quinta-feira, 26 de março de 2009

Não era questão de haver silêncio ou das palavras serem incessantes. Nos comunicávamos com o mundo físico apenas por uma necessidade, vivíamos mesmo era em uma realidade inventada, planejada minuciosamente no decorrer de instantes misteriosos em que não há uma regra pra tudo: improvisa-se de acordo com o que se recebe da vida. E foi assim que, de uma forma ou de outra, aprendemos a viver sem grandes preocupações. Uma tarefa, uma obrigação, mas nada insuperável, nada que fosse eterno. Nossa memória tinha de se ocupar com coisas mais importantes do que a incerteza.
Andávamos em um passo acelerado demais para quem não queria deixar o outro, eu e a Amiga. Nos olhávamos curiosos e ríamos dessa curiosidade, como se ela fosse uma coisa constrangedora, desnecessária naquele momento. Ergui a mão para coçar o olho e vi uma mãe trazendo a filha pela mão. A criança gritava à figura materna um desejo importantíssimo e estava a ponto de chorar, de bater naquela mulher se fosse preciso. Só as crianças sabem desejar com verdade. A mãe, como toda mãe que, chegando o final da tarde vive também fora do mundo, negou, não verbalmente, mas ignorando a súplica voraz da criança. Trágica ou não, ri da cena. Pensei que é a ordem natural das coisas uma criança querer e a afirmação dessa ordem é a mãe negar. O troco surgirá de um rancor que, voluntário ou não, se manifesta anos depois. Mães negam aos filhos. Crescidos, são os filhos que negam as mães - e às mães, posteriormente, completando o ciclo.
Naquele momento éramos crianças, aquela a quem escolhi chamar de Poesia e eu. Nos enchíamos de desejos e rogávamos a Deus ao mesmo tempo, em segredo, como o desejo deve ser mantido. De certa forma ouvíamos a voz risonha nos dizendo "não dá, não dá!"
Nos calávamos mais intensamente. De súbito um céu de outono seguido de vento nos cortava os olhos. Os fechamos parcialmente. A criança tinha ido com sua mãe e o dia nos seguia lentamente em nossa marcha quase acelerada. O que restou no chão que pisamos foram os desejos que descartamos. Ficamos com os sonhos e com a nossa realidade fantasiosa, dos quais não nos separamos nunca e onde, incompreensivelmente, os desejos nos seguem de volta, nos alcançando mais rápido do que podemos imaginar.