sexta-feira, 12 de junho de 2009

O homem antônimo

Era o homem-antônimo, insistia com a existência da crase mesmo após ela ser declarada extinta. Torcia pela chuva, quando o dia o amanhecia sob os feixes de Hélios. Chorava ao ver qualquer filme com trilha do Enio Morricone. Ia à praia pra ficar enterrado na areia. Dormia sujo, mas tinha mania de limpeza. Comprava livros e mais livros, embora não os lesse. Fazia planos de viajar, mas intimamente sabia que nunca se afastaria de lá. Abria a janela para o vento entrar, de cachecol e pantufas. Ria pra agradar falsos amigos. Fazia cursos de culinária, mas mal sabia afiar uma faca. Se dizia a "nata pensante", mas assinava revistas tendenciosas. Criticava o conformismo da sociedade, mas não tinha opinião própria. Comia no banheiro, pra economizar tempo. Colecionava gadgets, mesmo sem ao menos saber o conforto que um abraço pode trazer. Usava remédios pra dormir, mesmo não sofrendo de insônia. Tirava fotos, na esperança de um falso sorriso o convencer de que sua vida era feliz o suficiente. Citava a simplicidade, sempre que podia. Gostava das filas do banco, especialmente em dia de pagamento. Torcia pra Argentina. Mas não era do contra, só oscilava. Até suas oscilações eram antônimas. Conversava sobre tudo, mesmo que isso nunca o levasse a nada. Talvez só pensasse sem agir. Quiçá seu eu real se escondesse por detrás de múltiplas facetas, estarrecidas com a frequente oposição de valores, de regras. E, mesmo sabendo que a mudança constante tem um quê de evolução, negava a si mesmo novas oportunidades. Jamais havia se apaixonado. Temia ser largado. Mais que tudo, de ser trocado. Mas saía de qualquer relacionamento assim que sentia a iminência de se sentir completo. Não se permitia a erros, embora repetisse os mesmos tropeços inconscientemente. Sentia-se incapaz de agir inatamente, até seu coração era sistemático. Preferia evitar o primeiro passo. Não por ócio, era um descrente. Era um simbiótico de pequenas coisas, mas nessa parte, não o posso julgar. Sofria de desmazelos futuros, alimentava seu ódio pensando o quão o futuro seria pior que o "presente". Virou hipocondríaco, lógico. Em suma, não vivia. Para ele, claro. Costumeiramente, se mirava no espelho. Espelho. E no auge de sua infelicidade, talvez em alguma ranhura de testa, me fitava, com desprezo.