sábado, 12 de dezembro de 2009

Brasileiro

O sujeito que o contratara por um salário mínimo lhe dissera que ele ainda tinha sorte, pois onde já se viu, contratar numa crise dessas que grassava o país. Era um sujeito que gostava de usar verbos desse tipo, aureliados, pomposos, que pareciam conceder dignidade às suas palavras, muito embora ele não chegasse a materializar em sua mente tais abstrações. Grassar, retecer, conscupar; e por aí vai. E por detrás de sua cara amassada, toda a imponência autoritária, sim. Prerrogativa da qual ele se revestia no seu cargo. Ele alí, sentado, com a gravata e a palavra, ao passo que os homens que passavam por sua mesa permaneciam mudos, na submissão que a ele agradava, a não ser por rompantes monossilábicos do tipo “sim senhor” ou “não senhor”. Estivesse de bom humor, discorria também um pouco sobre os problemas do país. Culpava aos políticos, embora adorasse uma corruptela diária. Ostentava diplomas nas paredes – pintadas às pressas, de amarelo ocre – , todos falsos. Quem ousaria inquiri-lo sobre sua veracidade?
Achava que ganhava pouco, e por isso era inflexível. Julgava sua empresa importante a ponto de proibir que os empregados manchassem o santo nome dela envergando seus uniformes nos mais “infames botequins”.
Ele, à frente do tal sujeito, murmurou um muito obrigado. Conseguira, mas conteve o entusiasmo, afinal foram três meses de gravatas e palavras. Tantos narraram as condições socioeconômico-culturais da classe operária antes de brandir o típico “sinto muito” ou “você não se encaixa nos quesitos da corporação”. Não é preciso dizer que uma aura poética o havia rodeado. E isso o fez esquecer até mesmo da melancolia, poderia voltar a saborear o pão na chapa com mortadela daquelas de padaria mesmo. Poderia – há quanto tempo não o fazia – pegar um cineminha despretensioso no final de semana. Esticar pra uma porção de fritas e meia dúzia de garrafas geladíssimas. Pensar nisso o fez sorrir, lábios curvados tal qual arco de Eros. Ele não era burro, apenas não havia crescido num ambiente onde pudesse aprimorar sua educação. Faltava o tal canudo, mesmo sendo ele fervoroso devorador de livros. Resignava-se por saber das artes. De nada adiantava as belezas reconhecíveis de um Monet, as graciosas pinceladas de um Fragonard, a força de um Portinari; se sempre se sentia um Van Gogh, cuja morte solitária o provocava. Revoltava-o saber da literatura. Poe, Goethe, Kafka, Rachel de Queiroz, José de Alencar, Quintana. Pra quê, se seu sofrimento era extensão dos meandros literários?
Sabia da dinâmica dos oceanos, da diferença entre evolução vertical e especiação, das relações inseto-planta. Mas, dele só queriam a mecânica de seus braços. A força que engorda as barrigas e bolsos do sujeito que o contratara. Que paga as gravatinhas de seda e ternos que escondem a burrice dos patrões.
Já havia pensado em se atirar na frente do trem, como um desejo de retorno aos braços e seios maternos, e por que não, à vida uterina, indiferenciada e que todos iguala. Trem esse do sofrimento diário, do atropelamento metafórico. Não fosse o café com açúcar (a doçura na boca acalentadora do amargor da vida), tomado às pressas, não o aguentaria.
Sabia como ninguém dar valor às trivialidades da vida, essa tão efêmera e paradoxal.
E, certo dia, no meio do balanço da condução, um pensamento abafado sob as discussões da novela começou a ganhar a cabeça do tal homem. Foi percebendo, com clareza, que seu vazio não era só econômico. Estendia-se ao uniforme da firma em que fora contratado. Mero invólucro, dentro do qual ele se enfiava diariamente. O oco que o impedia de ser feliz. Resolveu, então, metamorfosear-se. Empupou, virou borboleta e voou. Era brasileiro, mas ser pentacampeão não era suficiente.