quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Antoine Saint-Exupèry - Cidadela

"Não foram tão poucas assim as vezes que vi a piedade enganar-se. Mais não faço do que negar essa piedade às feridas de exibição que comovem o coração das mulheres. Assim como também a nego aos moribundos, e além disso aos mortos. E sei bem por quê.
Houve uma altura da minha mocidade em que senti piedade pelos mendigos e pelas suas úlceras. Procedi assim até descobrir que eles tinham como artigo de luxo aquele insuportável fedor. Surpreendi-os a coçar e a regar com bosta aquelas pústulas, como quem estruma uma terra para dela extrair a flor cor de púrpura. Mostravam orgulhosamente uns aos outros a sua podridão e gabavam-se das esmolas recebidas. Aquele que mais ganharam comparava-se a si próprio ao sumo sacerdote que expõe o ídolo mais prendado. Se consentiam em consultar o meu médico, era na esperança de que o cancro deles o surpreendesse pela pestilência e pelas proporções. Chegavam a empregar os cotos para conquistar um lugar no mundo. Daí também o aceitarem os cuidados como uma homenagem e oferecerem os membros a abluções bajuladoras. Mas, apenas o mal os deixava, descobriam-se sem importância. Já nada alimentavam que fosse deles próprios, davam-se por inúteis. O único remédio era ressuscitar de novo essa úlcera que vivia à custa deles. E, uma vez envoltos de novo no seu mal, gloriosos e vãos, pegavam na escudela e tornavam a empreender o caminho das caravanas. Voltavam a espoliar os viajantes em nome dos seus sórdidos deuses.
Houve também um tempo em que tive piedade dos mortos. (...) Ainda não tinha descoberto que nunca há solidão para os que morrem. Não havia ainda tropeçado com a condescendência deles.
(...)
Só o que a morte escolheu, entretido a vomitar o sangue ou a conservar as entranhas, descobre esta verdade: não há horror algum na morte. O próprio corpo se lhe antolha, instrumento doravante inputil. Como já não serve para nada, tem de o pôr de parte. Corpo desmantelado, objeto de ostensiva deterioração. E, se esse corpo tem sede, o moribundo só vê nele uma ocasião de sede, de que aliás gostaria de se ver livre. E tornaram-se inúteis todos os bens que serviam para preparar, alimentar, festejar essa carne semi-estrangeira, afinal mera propriedade doméstica, como o burro atado à sua argola.
Começa então a agonia, que não passa do balanço de uma consciência ora vazia ora cheia das marés da memória. Vão e vêm como o fluxo e o refluxo, trazendo, da mesma sorte que tinham levado, todas as provisões de imagens, todas as conchas da recordação, todos os búzios de todas as vozes ouvidas. Sobem, banham de novo as algas do coração, e aí temos todas as ternuras reanimadas. Mas o equinócio prepara o refluxo decisivo, o coração se esvazia, a maré e as suas provisões reentram em Deus.
Para quê negá-lo? Também já vi gente que fugia da morte, impressionada de antemão pelo confronto. Mas é bom que vos desenganeis: aquele que morre, nunca eu o vi amedrontar-se.
Se assim é, para que os hei de lastimar? Para que chorar o seu acabamento? A perfeição dos mortos!".

Falta consciência a todos, e não só nesses assuntos...

Cheiro,

Gui